domingo, 8 de fevereiro de 2009

Devolva-me a minha laranja!

Estive pesquisando sobre o crime de homicídio (artigo 121, CP), pois uma aula no cursinho ontem despertou-me uma dúvida. Afirmava o professor com "certeza" que a ausência de motivos "para a maioria da doutrina e jurisprudência" equipara-se ao homicídio qualificado por motivo fútil (artigo 121, §2.º, II, CP). Ele dizia: "se um pouco de motivo já qualifica o homicídio, quem dirá sem motivos?".
Eu sempre aprendi que a ausência de motivos não qualifica a conduta do sujeito ativo do homicídio. Assim, o homicídio praticado com ausência de motivos é sempre simples, enquadrando-se no caput do artigo 121. O que em um primeiro momento parece irracional, e ilógico, visto que o sistema brasileiro não tipifica a "ausência de motivos" como qualificadora, fazendo com o que o agente tenha um apenamento mais brando; é reafirmado pela maioria SIM da doutrina. Isso ante o princípio basilar do sistema penal, qual seja, o da legalidade, exposto no artigo 5.º, XXXIX, CF e abrindo o CP - artigo 1.º: não há crime sem lei anterior que o defina. É assim que dispõe Cezar Roberto Bitencourt: O homicídio simples, em tese, não é objeto de qualquer motivação especial, moral ou imoral, tampouco a natureza dos meios empregados ou dos modos de execução apresenta algum relevo determinante, capaz de alterar a reprovabilidade, para além ou para aquém da simples conduta de matar alguém. Ademais, ao longo do tempo, cristalizou-se corrente jurisprudencial segundo a qual a ausência de motivo não caracteriza futilidade da ação homicida, isto é, a absoluta ausência de motivo é menos grave do que a existência de algum motivo, ainda que irrelevante. Trata-se, na verdade, de um paradoxo que somente a exigência de absoluto respeito ao princípio da estrita legalidade nos convence a aceitar, embora no plano lógico, sociológico e ético seja absolutamente insustentável[1]”. Também nesse sentido, a lição de Luiz Regis Prado: “O motivo fútil não se confunde com a ausência de motivo ou com o motivo injusto[2]”. De igual doutrina, Celso Delmanto: “Entendamos que a ausência de motivos não pode equivaler à futilidade do motivo[3]”. Vale dizer, o motivo fútil é aquele banal, ínfimo, mínimo, desarrazoado, que demostra desproporção entre a motivação e o crime praticado. "Motivo fútil é aquele pequeno demais para que na sua insignificância possa parecer capaz de explicar o crime que dêle resulta. O que acontece é uma desconformidade revoltante entre a pequeneza da provocação e a grave reação criminosa que o sujeito lhe opõe. A um leve gracejo de um companheiro o agente responde com uma facada que o mata; vê uma criança colhendo uma laranja no seu quintal e a abate com um tiro. O que o Código toma em conta é essa estranha insensibilidade, esse desprezo pela vida alheia, que o agente revela na inconseqüente motivação do seu comportamento". (Aníbal Bruno in Crimes contra a pessoa, Rio de Janeiro: Editora Rio, 1979, p. 78.)

O princípio da legalidade é o escudo protetor do indivíduo contra os abusos estatais. Por disposição dele, nenhuma conduta que não seja típica pode ser condenada. Ainda, não se permite a interpretação analógica in malam partem. Veja julgado do TJRS: "HOMICÍDIO TENTADO. PRONÚNCIA. RECURSO EM SENTIDO ESTRITO. A ausência de motivo aparente para a prática de homicídio tentado, talvez tão ou mais reprovável, eticamente, do que a execução do crime por motivo torpe ou fútil, juridicamente não qualifica o delito, por ausência de previsão legal, mostrando-se inadmissível interpretação analógica, em decorrência do princípio constitucional da reserva legal. (TJ-RS. 3ª Câmara Criminal. Recurso em Sentido Estrito N° 70017390345/2006)".

Em suma e em linhas breves (o tema dá pano para uma camiseta inteira), a ausência de motivos não se confunde com a qualificadora do motivo fútil. Se o sujeito ativo praticar a conduta típica sem motivo nenhum, deverá ser enquadrado no caput do artigo 121, como homicídio simples. Apenas para ilustrar, colaciono um julgado, também do TJRS, a favor da equiparação: A ausência de motivo equipara-se, para os devidos fins legais, ao motivo fútil, porquanto seria um contra-senso conceber que o legislador punisse com pena maior aquele que mata por futilidade, permitindo que o que age sem qualquer motivo receba sanção mais branda” (RT 622/332).

É mais um ponto controvertido do Direito (e isso que é bom :D).

Referências:
[1] BITENCOURT, Cezar Roberto. Manual de direito penal: parte especial. V. 2. São Paulo: Saraiva, 2001. p. 53.
[2] PRADO, Luiz Regis. Curso de direito penal brasileiro. Vol. 2. 3. ed. rev. e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p. 61.
[3] DELMANTO, Celso. Código penal comentado. 6. ed. atual. e ampl. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. p. 250.

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