sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009

"Eu repristino, tu repristinas, ele repristina"

Resolvi postar as "breves" (tenho problemas com a definição dessa palavra, como você já percebeu) linhas sobre a aplicabilidade da Constituição no tempo. Assim, dou mais uma chance para você tentar resolver as questõeszinhas do post anterior. No próximo, coloco o bendito gabarito. Mãos à obra!
O que acontece com as normas que foram produzidas na vigência da Constituição anterior com o advento de uma nova Constituição? São revogadas? Perdem a validade? Devem ser novamente editadas? O direito intertemporal, vale dizer, tem relação direta com a segurança dos cidadãos. “O respeito ao direito adquirido, com a conseqüente proibição da retroatividade da norma legal, é um verdadeiro instrumento de paz social, impeditivo do arbítrio e do abuso de poder por parte do detentor deste[1]”.

1) Relação da Constituição NOVA x Constituição ANTERIOR

a) A Constituição anterior é inteiramente revogada: AB-ROGAÇÃO (revogação total). É a tese que prevalece na doutrina e que é aceita pelo STF. Assim, toda a Constituição é revogada automaticamente com o advento de uma nova Constituição, independentemente de conter normas compatíveis com a nova ordem constitucional.

b) Tese da desconstitucionalização: É a tese minoritária, defendida por Maria Helena Diniz. As normas da Constituição anterior podem ser recebidas (recepção) se houver compatibilidade material com a nova Constituição e desde que o assunto não tenha sido tratado na nova Constituição. Contudo, serão recebidas como LEI ORDINÁRIA, e não como normas constitucionais. A desconstitucionalização, portanto, é a possibilidade de recepção tácita, pela nova ordem constitucional, de dispositivos da Constituição anterior como legislação infraconstitucional. Essa teoria da desconstitucionalização tácita é vedada no ordenamento jurídico, sendo aceita somente se houver dispositivo expresso na Constituição nova recepcionando a anterior como lei (desconstitucionalização expressa).

Por que a denominação “desconstitucionalização”? Porque os dispositivos da Constituição anterior sofreriam um processo de desconstitucionalização, isto é, perderiam eles sua natureza de normas constitucionais, e ingressariam no novo ordenamento como se fossem meras leis.

Em suma... No silêncio da nova Constituição, entende-se que TODA a constituição anterior foi revogada, inclusive suas cláusulas pétreas. É o fenômeno da ab-rogação.

2) Relação da Constituição NOVA x direito infraconstitucional anterior (lei anterior)
Leva em consideração o princípio da segurança jurídica, e a continuidade da ordem jurídica.

a) Lei ou ato normativo anterior é recebida pela nova Constituição: RECEPÇÃO, continuando em vigor. Devem ser aferidos dois requisitos para a recepção da lei anterior: a) deve ser constitucional em face da Constituição anterior; e b) deve existir compatibilidade material (de conteúdo) com a nova Constituição.

b) Lei ou ato normativo anterior não é recebida pela nova Constituição: NÃO-RECEPÇÃO. Ocorre quando a lei é inconstitucional em face da Constituição anterior, ainda que compatível com a nova Constituição (isto é, inconstitucionalidade material). Isso porque a Constituição nova não convalida e nem corrige vícios de inconstitucionalidade das leis e atos normativos anteriores.

**Incompatibilidade da lei anterior com a Constituição nova no aspecto formal à uma lei que fere o processo legislativo previsto na Constituição nova, poderá ser recebida por ela se compatível? SIM. É irrelevante que exista incompatibilidade formal com a Constituição nova, pois não existe inconstitucionalidade formal superveniente. O maior exemplo é o CTN, que foi recebido como lei complementar pela CF vigente, embora tenha sido editado como lei ordinária, durante a vigência da Constituição anterior.

São requisitos para a recepção da lei anterior:
Ø Estar em vigor no momento do advento da nova Constituição;
Ø Não ter sido declarada inconstitucional durante a sua vigência no ordenamento anterior;
Ø Ter compatibilidade formal e material perante a Constituição sob cuja regência ela foi editada (no ordenamento anterior);
Ø Ter compatibilidade somente material, pouco importando a compatibilidade formal, com a nova Constituição.

c) REVOGAÇÃO total (ab-rogação) ou parcial (derrogação): quando a lei ou ato normativo infraconstitucional for compatível materialmente com a Constituição anterior, porém incompatível materialmente com a nova Constituição, será por esta revogada.

**Incompatibilidade material superveniente? A tese que sustenta a inconstitucionalidade material superveniente das leis anteriores em face da nova Constituição não é aceita pelo STF. Para este tribunal, não se pode falar em inconstitucionalidade nessa situação (confronto de uma lei antiga com a nova constituição), porque “o juízo de constitucionalidade pressupõe contemporaneidade entre a lei e a constituição, isto é, pressupõe lei e constituição de uma mesma época”. Pode ocorrer, contudo, em um única hipótese, na mutação constitucional. Assim, com a nova interpretação, a lei que nasceu constitucional, torna-se inconstitucional. Os efeitos aqui são ex nunc, a lei é declarada inconstitucional a partir da mutação.

Conclusões da RECEPÇÃO:
Ø No fenômeno da recepção, só se analisa a compatibilidade material perante a nova Constituição;
Ø Como a análise perante o novo ordenamento é somente do ponto de vista material, uma lei pode ter sido editada como ordinária e ser recebida como complementar;
Ø Se incompatível, a lei anterior será revogada, não se falando em inconstitucionalidade superveniente;
Ø Neste caso, a técnica de controle, ou é pelo sistema difuso, ou pelo concentrado, mas, neste último caso, somente por meio de ADPF. Isso porque só se fala em Adin de uma lei editada a partir de 1988 e perante a CF/88 (princípio da contemporaneidade);

d) REPRISTINAÇÃO: este fenômeno ocorre quando uma lei volta a vigorar, pois foi revogada a lei revogadora. “Uma norma produzida na vigência da CF/46 não é recepcionada pela de 1967, pois incompatível com ela. Promulgada a CF/88, verifica-se que aquela lei, produzida na vigência da CF/46 (que fora revogada – não recepcionada – pela de 1967), em tese poderia ser recepcionada pela CF/88, visto que totalmente compatível com ela. Nessa situação, poderia aquela lei, produzida durante a CF/46, voltar a produzir efeitos?
[2]” Como regra geral, o Brasil adotou a impossibilidade do fenômeno da repristinação (de forma tácita), SALVO se a nova ordem jurídica expressamente assim se pronunciar (artigo 2.º, §3.º, LICC, salvo disposição em contrário, a lei revogadora não se restaura por ter a lei revogadora perdido vigência). A regra, portanto, é a irretroatividade, não existindo retroatividade tácita.

Referências:

[1] LENZA, Pedro. Direito constitucional esquematizado. 12. ed. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 93.
[2] Ibidem, p. 96.

Um comentário:

  1. Muito bem.

    Pergunto: Se encaixa na hipótese de incompatibilidade material o fato de uma pessoa jurídica de direito público (criada por lei municipal anterior à cf/88 como autarquia)que atua com intuito economico, lucrativo e remunerado por tarifa ser mantida e tida atualmente como autarquia, sabendo-se que a CF/88 só admite órgão público atuando como empresa pública quando na prestação de serviço não essencial, com intuito economico/privado? Ou melhor, para a CF, autarquia é fundação pública que presta serviço essencial e eminentemente público, remunerável por taxa ou tributo, mas nunca por preço público ou tarifa.

    Desta forma, o órgão estando atuando como autarquia, com beneficios do art. 188 do cpc, inclusive, embora em atividade economica, não teria sido recepcionado pela CF como autarquia, mas sim, como empresa pública ou sociedade de economia mista?

    Haveria neste exemplo a incompatibilidade material? A lei que criou a autarquia não teria sido recepcionada neste ponto? Mas sim com a modificação exigida pela nova CF?

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